OS JOGOS SALVAM

Muitos videojogos não se evidenciam especialmente pela qualidade e profundidade diegética, percorrendo os caminhos seguros e familiares do cliché e do maniqueísmo, com personagens boas que são só boazinhas e personagens más que só sabem ser mazinhas. E quando heróis e vilões querem fugir aos estereótipos, nem sempre os resultados são animadores. Nada de particularmente grave, podemos argumentar, se os lugares-comuns servirem perfeitamente os propósitos dos autores da obra ou, no sentido inverso, os dos jogadores que procuram apenas um escape instantâneo para mundos de fantasia.

Mas a realidade tem várias formas de nos mostrar que é capaz de ultrapassar a ficção. Ou, quando pensamos que o mundo se pinta em tons de cinzento, há sempre quem nos queira convencer que afinal é preto e branco. Como a Left Behind Games, uma editora independente cujo objectivo é criar “entretenimento interactivo de qualidade que perpetue valores positivos e apele a uma audiência mainstream de jogadores cristãos, estando simultaneamente empenhada em criar mais-valias para os accionistas e perseguir os maiores padrões de integridade e profissionalismo em todas as áreas de negócio”.

Desde 2001 que a Left Behind Games produz este tipo de títulos, todos adaptados de uma série de livros intitulada justamente 'Left Behind' que já vendeu uns estrondosos 63 milhões de cópias nos Estados Unidos.

É o caso de Eternal Forces, um jogo de estratégia em tempo real para PC com lançamento anunciado para a data da Ressurreição, a Páscoa. O trailer (de visionamento obrigatório) marca o tom da acção. Ao longo da História, existiram três tipos de pessoas: os que procuraram uma relação pessoal com Deus; os crentes e ateus que não se relacionam com Deus; e os que escolhem ignorar Deus. No Fim dos Tempos, Deus virá buscar o seu Povo. Quem não é por Ele, está contra Ele. E é essa batalha, violenta, contra os “outros”, que o jogo pretende retratar. O jogador assume o comando das Forças da Tribulação e da Comunidade Global de Pacifistas durante o Apocalipse, em plenas ruas de Nova Iorque – arranha-céus em chamas e tudo. O objectivo é recrutar os nova-iorquinos que não foram resgatados por Deus – os “left behind” do título – treinando-os para um exército de paramilitares que vai combater o Anti-Cristo com uma ferocidade que se poderia de rotular de… pouco cristã.

A julgar pelo trailer e pelas imagens disponibilizadas, fica já, sem ter experimentado a obra, a sensação de que partilha dos valores de produção de alguns dos títulos generalistas mais avançados actualmente presentes no mercado. É essa a principal inovação num género que não é uma novidade absoluta na indústria dos jogos electrónicos. Já existem vários títulos com referências bíblicas lançados com o objectivo de difundir a fé cristã. O site da Christian Game Developers Foundation possui bastante informação a esse respeito. Existe até uma crítica especializada em videojogos cristã. Leiam por exemplo esta crítica a Doom 3 no site Christian Centered Game Reviews.

A entrada dos evangelistas norte-americanos no mundo dos videojogos é, afinal, a repetição daquilo que já se passa noutros media. Nos Estados Unidos, a CCM (Contemporary Christian Music) é responsável, há quase 40 anos, por uma enorme e lucrativa indústria da qual fazem parte artistas, editoras e rádios de índole cristã, vendendo milhões de discos de géneros tão diversos como a pop, o rock, o country, o hardcore ou o metal – tudo inspirado pela fé.

“Existe um mercado importante para o entretenimento inspiracional. Isso é visível no sucesso crossover da música cristã, do filme ‘The Passion of the Christ’ e na série de livros ‘Left Behind’”, justifica o CEO da Left Behind Games, Troy Lyndon. “A chave para o sucesso a longo-prazo neste mercado é produzir títulos AAA que rivalizem na qualidade com os jogos que mais vendem actualmente. O nosso objectivo é criar jogos duradouros que criem laços com as pessoas e as toquem através de experiência emocionais, memoráveis e comoventes”.

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